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Lula recebe carta de intelectuais que pede “soberania digital” sem a presença do mercado privado


Uma “carta aberta” encaminhada ao candidato à presidente Luiz Inácio Lula da Silva, assinada por diversos intelectuais de esquerda, de organizações não-governamentais e do meio Acadêmico, propõe um “Programa de Emergência para a Soberania Digital”. Por mais que sejam boas as intenções dos signatários do documento, as nove propostas contidas nele são confusas, questionáveis e algumas até estapafúrdias, como, por exemplo, financiar a construção de novos datacenter para hospedagem de dados acadêmicos, científicos e até de ONGs.

Além disso, o documento traz de volta uma velha e desgastada disputa ideológica contra o mercado privado de Tecnologia da Informação e Comunicações, sobretudo o de nuvem. Deixa a impressão de que esses ativistas acordaram de um sono que começou há 20 anos e não assistiram a transformação digital que ocorreu no Brasil desde então, graças justamente ao setor privado.

O documento é confuso, em determinado momento parece estar se dirigindo à Lula com propostas para a área Acadêmica. Mas em outros trechos trata de questões nacionais. E aí mistura problemas distintos como, soberania, proteção de dados, reforma trabalhista e educacional, racismo algorítmico, entre outros temas.

Carregado de clichês do tipo: “as tecnologias digitais não podem servir para ampliar as desigualdades e a dependência do país ao grande capital internacional” ou; “nosso país não pode continuar tendo seu rumo tecnológico ditado pelas consultorias internacionais ligadas às Big Techs”, o documento contém nove propostas:
  1. Criar uma infraestrutura federada para a hospedagem dos dados das universidades e centros de pesquisa brasileiros conforme nossa LGPD.
  2. Formar, nessa infraestrutura federada, frameworks para soluções de Inteligência Artificial, seja para o setor público ou privado.
  3. Incentivar e financiar a criação de datacenters que envolvam governos estaduais, municípios, universidades públicas e organizações não-governamentais, que permitam manter dados em nosso território e aplicar soluções IA que estimulem e beneficiem a inteligência coletiva local e regional.
  4. Promover a instalação, no MCTI, de equipes multidisciplinares para a prospecção de tecnologias e experimentos tendo como princípios a tecnodiversidade e em busca de promover avanços em áreas estratégicas ao desenvolvimento nacional. Em articulação com o MEC, promover também a formação de recursos humanos criando mecanismos para que permaneçam no setor público de maneira a nos afastar da dependência das grandes corporações.
  5. Incentivar e financiar a criação de arranjos tecnológicos locais para desenvolver soluções que visem superar a precarização do trabalho trazidas pelas Big Techs.
  6. Garantir recursos para apoiar e financiar a criação de cooperativas de trabalhadores, que possam desenvolver e controlar plataformas digitais de prestação de serviços, assim como outros arranjos que evitem a concentração de poder tecnológico, tanto em empresas estrangeiras como nacionais.
  7. Lançar um extenso programa interdisciplinar de formação, inclusive ética, e de permanência de cientistas e técnicos, implantando e financiando centros de desenvolvimento para a criação e desenvolvimento de soluções de IA, de automação, robótica, computação quântica, desenvolvimento local de chips, redes de comunicação de alta velocidade entre outros.
  8. Utilizar o poder de compra da União para incentivar o atendimento das necessidades tecnológicas do país, bem como fomentar soluções interoperáveis com software livre, e outras formas abertas de desenvolvimento e compartilhamento de tecnologia.
  9. Resgatar e recuperar a Telebras, organizando um levantamento dos bens reversíveis que estão subvalorizados e em poder das teles e implementando uma política de redução das assimetrias e desigualdades digitais. Esta pode ser feita em parcerias de modo coordenado com estados, municípios e organizações não-governamentais, com tecnologias consolidadas mas também desenvolvendo opções de conexão inovadoras.
Mas o melhor momento desses intelectuais foi quando eles decidiram encaminhar para Lula a tese de que “não podemos nos contentar com o bloqueio tecnocientífico de nossas capacidades criativas. Temos que colocar no centro de nossa proposta a expansão da tecnodiversidade, da luta contra o epistemicídio, do desbloqueio da inventividade de nosso povo”.

Talvez para explicar que a transformação digital brasileira deve visar o bem-estar social, o capital humano e o enfrentamento das desigualdades, do racismo algorítmico e a segregação. Fatos que existem, mas não são somente problemas nacionais. O mundo inteiro discute questões como essas.

Datacenter federado

A ideia de financiar a construção de novos datacenters para a guarda dos dados acadêmicos ou produzidos por governos (em todos os níveis), ONGs e Universidades Públicas é uma ideia completamente absurda. Primeiro, porque do ponto de vista fiscal, o futuro governo que assumir pegará um país quebrado, com uma dívida social de 33 milhões de famintos, 19 milhões de desempregados, entre outros indicadores econômicos e sociais ruins. No campo das prioridades, dá para se gastar com datacenter para armazenar informações de pesquisadores?

Além disso, qual a justificativa para armazenar dados científicos através de novos datacenter, se o país já dispõe duas estatais, por sinal, as maiores da América Latina, voltadas para esse fim? Não seria mais barato e eficaz contratar o Serpro e a Dataprev para isso?

Essa discussão de guardar os dados da produção científica brasileira em solo nacional por datacenter estatal é chover no molhado e nada tem de relação direta com a Lei Geral de Proteção de Dados. Os provedores globais de nuvem estão obrigados por legislação a armazenar os dados de brasileiros aqui e até provem em contrário seguem rigidamente as leis vigentes. Se os dados estão indo para o exterior é um caso a se investigar, dada a falta de transparência nos contratos públicos. Da mesma forma teria de se investigar se o Serpro está cumprindo a legislação, pois sempre se nega a mostrar os contratos que assina com empresas privadas.

O site Capital Digital já deu exemplos clássicos disso.

Dependência tecnológica

“A concentração das ofertas de tecnologia por empresas transnacionais cria uma relação de dependência que reduz a diversidade do mercado e limita as ofertas produzidas no Brasil”, insistem os porta-vozes desse documento.

Parece que o meio acadêmico brasileiro ainda se apega na desgastada luta contra os pacotes Microsoft, como bandeira de luta contra o capital internacional. Pura bobagem, se levado em conta que até no mundo do código aberto todo mundo quer ganhar dinheiro, e brigam diariamente por conta de contratos com governos, pois não existe almoço de graça. Aliás é de se indagar, onde ainda não foi implantado e utilizado o código aberto?

Recentemente o site Capital Digital fez uma série de reportagens sobre o que ocorre nas entranhas da Dataprev, e uma disputa comercial entre revendas de sistemas operacionais em código aberto (Linux). E, pasmem, mostra exatamente isso; a opção de uma estatal em ser “dependente” de um único sistema em detrimento de outros. Não houve manifestação de nenhum dos signatários desse documento supostamente entregue à Lula, que agora andam tão preocupados com os rumos que o país vem tomando com a presença do setor privado.

Consultorias

Ao afirmar que o Brasil não pode continuar num rumo tecnológico “ditado pelas consultorias internacionais ligadas às Big Techs”, os intelectuais de esquerda relativizam o problema e cometem um injustiça com essas empresas. Não consta para este blog, que tais consultorias estejam batendo na porta do governo para impor tecnologia ou indicar de qual o fornecedor deve comprar. As consultorias existem, sim, por iniciativa e apoio de grandes multinacionais de tecnologia, que desejam criar um ambiente de discussão com o objetivo de vender soluções para o mercado privado e governos.

Mas isso é ilícito? Obviamente não. Elas apenas têm se limitado, quando chamadas, a mostrar as tendências do mercado de Tecnologia mundial. Já quem escolhe qual o caminho seguir e que fornecedor irão procurar, isso é problema das empresas ou governos.

As consultorias só prosperam em países que abriram mão de desenvolver, criar e inovar. O Brasil há anos tomou a decisão errada de consumir o que já vinha pronto de outros países que assumiram esse papel. O resultado é o de sempre: se não quer ter o trabalho, pague mais caro para aqueles que tiveram. Dá para mudar essa relação? Claro, mas levará anos de construção de um projeto nessa direção. Mas sem a megalomania de pensar que o Brasil poderá enfrentar as multinacionais, nesse bonde da história nem o governo norte-americano embarcou.

Dados e sigilos

“Nossas universidades, e muitas escolas, entregaram suas estruturas de informação, dados, e-mails, armazenamento de interações e documentos para empresas estrangeiras, que vivem do tratamento de dados. Este cenário é um reflexo mais imediato do desinvestimento na infraestrutura e em recursos humanos na área de tecnologia de informação, gerando um cenário de dependência crescente de corporações estrangeiras no setor”, alegam os signatários da carta ao candidato Lula.

Sim, isso ocorre desde 2019 e este blog alertou para a questão, não viram?



Porém, essa decisão foi tomada pelas próprias Universidades e escolas técnicas, ao aceitarem passivamente que a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP), uma Organização Social “sem fins lucrativos”, vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), fechasse tais acordos com as empresas globais de nuvem e prestação de serviços. Indaga-se: a RNP não foi criada com o objetivo de ser essa “infraestrutura federada” para a conexão e armazenamento do conhecimento científico nacional?

Na carta os acadêmicos citam que, segundo o Observatório Educação Vigiada, 79% das Instituições Públicas de Ensino Superior do país têm seus e-mails institucionais alocados em servidores privados, localizados fora do país. Que são “gerenciados por empresas envolvidas no lucrativo mercado de coleta, análise e comercialização de dados pessoais. A Google (Alphabet, Inc.), o maior player desse mercado, armazena 72% dos e-mails institucionais das universidades públicas do país”, argumentam os intelectuais da esquerda Acadêmica”.

Mas onde estavam esses mesmos intelectuais que assinam essa carta, e não viram ou não criaram um movimento nacional para pressionar a RNP e os reitores das Universidades a mudarem esse rumo?

Aliás o documento curiosamente omite que o problema foi criado pela RNP, por que?

Estima-se no MCTI que a RNP já tenha recebido do governo nos últimos anos um montante de R$ 5 bilhões. Os números são sempre confusos para explicar os gastos com essa Organização Social sem fins lucrativos, vinculada ao MCTI, cujo presidente é o mesmo desde o Governo FHC.

A RNP ainda conta com apoio financeiro do MEC e do Ministério da Defesa e pelo menos um orçamento voltado para ela pelo governo é conhecido: essa organização social será a gestora de um fundo de R$ 1,5 bilhão, que as operadoras móveis irão destinar para a construção da rede de fibras ópticas do programa Amazônia Conectada, como compromisso do 5G.

Telebras

A comunidade acadêmica propõe ainda “resgatar e recuperar a Telebras”. Como assim?

A Telebras é uma das poucas estatais enxutas, com um quadro funcional pequeno e um patrimônio rentável. Basta lembrar o satélite geoestacionário. Mesmo tendo passado os últimos dois anos na lista das privatizações, a estatal manteve um desempenho extraordinário, ao conectar 14 mil pontos de acesso à Internet em comunidades carentes.

Nesse ponto, os acadêmicos misturam a discussão sobre o papel da estatal com a questão dos bens reversíveis que deveriam ter voltado para a União, questão que nunca foi resolvida entre a Anatel e as concessionárias de telefonia fixa após a privatização. Porém, neste caso paira uma dúvida: os intelectuais querem resgatar fios de cobre usados pela telefonia fixa para a Telebras utilizá-las na banda larga?

É o que parece pois no documento os intelectuais afirmam que o resgate desses bens reversíveis proporcionará ao governo fazer “parcerias de modo coordenado com estados, municípios e organizações não-governamentais, com tecnologias consolidadas mas também desenvolvendo opções de conexão inovadoras” (???).

*Conheça a carta aberta clicando nesse LINK.
Com informações de Capital Digital
Emerson Tormann

Técnico Industrial em Elétrica e Eletrônica com especialização em Tecnologia da Informação e Comunicação. Editor chefe na Atualidade Política Comunicação e Marketing Digital Ltda. Jornalista e Diagramador - DRT 10580/DF. Sites: https://etormann.tk e https://atualidadepolitica.com.br

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